sexta-feira, 9 de junho de 2017

Religião, Racismo e o Espaço Escolar: os desafios do professor no cumprimento da Lei 11.645.

Sérgio Pires - Licenciado em Ciências Sociais pela UFRGS, bacharelando em Ciências Sociais pela UFRGS com ênfase em Antropologia.




Religião, Racismo e o Espaço Escolar: os desafios do professor no cumprimento da Lei 11.645.


            Nesta semana ouvi o relato de um colega, professor de história da rede pública estadual, sobre as dificuldades que está encontrando no que se refere ao cumprimento da Lei 11.645, que inclui no currículo o ensino da história dos povos africanos (lei 10.639) e dos povos indígenas (ampliada pela lei 11.645.

            Pois bem, este professor nos relatou que, em uma turma de determinada escola, ele estava abordando os Grandes Reinos Africanos, como sabemos, bem antes da chegada dos europeus no continente africano, existiam grandes reinos, e o conteúdo do eixo temático era esse.

            Ora, quando abordamos civilizações, tanto antigas quanto modernas, no desenvolver da explanação do conteúdo são trabalhadas questões como localização, agricultura, organização social, organização política, e, é claro, a religião, obviamente sem um enfoque proselitista, mas sim informativo, uma vez que esta é uma característica muito forte e que se verifica em praticamente todas as civilizações.

            Quando o professor abordou sobre a religião deste reino, uma aluna, que se declarou ser evangélica, protestou contra o conteúdo, inclusive se negando a ao menos copiar o que foi passado no quadro, alegando que não era obrigada a ter contato que “coisas do demônio”. Um tanto aturdido com  a reação desta aluna, o professor explicou que não se tratava de uma abordagem religiosa do tema, mas sim da explanação de como era a religião daquele povo, e mesmo assim a aluna se manteve na sua postura, inclusive na aula seguinte, que era a seqüência do tema.

            Essa relato me deixou profundamente incomodado, muito por ter uma leitura da escola como um local de produção de conhecimento, de ciência, mas sobretudo, em uma visão freiriana, como um vetor de libertação, onde temos a oportunidade de nos libertar, não só das cadeias de reprodução social, mas também de questões como racismo, preconceito e intolerância, em especial nesse caso a intolerância religiosa.

            Compreender a escola como um local de diversidade cultural, uma vez que os alunos trazem consigo suas bagagens culturais, é fundamental neste processo de aprendizagem e da própria criação das identidades , uma vez que é na alteridade é que construímos, definimos o que somos ou não, mas sobretudo desenvolvendo o respeito ao diferente, ao outro.
           
            Quando vejo reações como dessa aluna, me faz refletir acerca de como a diversidade é abordada nos currículos escolares, uma vez que, não descartando obviamente a participação da família na formação do aluno enquanto ser social inserido nesse espaço de socialização que é o familiar, a escola deve pensar de modo muito consciente na elaboração de seus currículos, que devem abordar de modo positivo a diversidade, abandonando os modelos tradicionais de educação, que em grande parte das vezes desempenha um papel reificador de questões como o racismo e o preconceito, ao invés de desconstruí-los.

            Questões de foro íntimo, como religião, que é o viés principal dessa discussão, devem ser respeitadas no âmbito escolar, contudo, não deve interferir na vida escolar do aluno, salvo questões de ordem prática, como sabatistas por exemplo, mas quando se pensa em questões curriculares, não é admissível que, por ter determinada crença, o aluno deixe de cumprir o que se espera desta função social, colocando sua religião, que é de foro íntimo, como norteador do que se aprenderá na escola ou não, que é um espaço social de foro público, logo, esses dois foros não devem ser confundidos, assim como a função social de aluno ou de membro de determinada religião.
           
            A escola, portanto, é lugar de ciência, de aprendizagem, onde os atores sociais envolvidos apresentam uma grande diversidade cultural, e essa diversidade deve servir para enriquecer as relações sociais na escola, sem contudo interferir no processo de formação do currículo, especialmente tendo a religião, que é um fator pessoal, como crivo.

            A importância da aplicação da Lei 11.645 é fundamental, e para que efetivamente seja parte integrante do currículo, não meramente por obrigatoriedade, mas sim por um entendimento dessa importância por parte de toda a comunidade escolar, que é múltipla e diversa, e que essa diversidade seja fator de enriquecimento da educação, jamais como vetor de tolhimento, de limitação do saber e da produção do conhecimento.