domingo, 26 de novembro de 2017

Afinal, o que querem os estudos de gênero?




Cristine Severo é Mestra e Graduada em Letras pela UFRGS e Graduanda em Ciências Sociais pela UFRGS e Professora pela Rede Pública em Novo Hamburgo - RS



Afinal, o que querem os estudos de gênero?





     Nos últimos tempos, tem sido frequente uma enorme ojeriza em relação aos estudos de gênero, ao movimento feminista ou a qualquer pauta relacionada aos temas LGBTQ. Assisti a um vídeo na internet que mostrava crianças se posicionando contra a tal “ideologia de gênero” (eu realmente não sei o que é isso!), falando em Deus, dizendo que não nasceram erradas e que Deus não errou. O que vi no vídeo foi uma ignorância gigantesca sobre o que são os estudos de gênero. A internet e os brasileiros estão tomados pelo vírus da ignorância, cujos sintomas são: falar sobre qualquer assunto sem ler e sem pesquisar, não aceitar o diálogo, citar Deus quando não deveriam, não querer aprender sobre o assunto, entre outros ainda não descobertos (é possível que os sintomas se manifestem de forma diferente em cada pessoa dependendo do nível de intolerância de cada um).
     Felizmente esse vírus tem cura: se chama pesquisa e leitura. Se, mesmo depois de ler e pesquisar sobre os assuntos, as pessoas ainda forem contra, pelo menos o são com propriedade, e não baseados em Deus ou algo do tipo. Não que Deus não seja importante, mas não é um argumento científico válido, além de não ser real para todo mundo. Algumas pessoas acreditam em outros deuses, outras nem acreditam, então, sempre que Deus entrar na conversa, haverá um ponto de vista religioso não compartilhado por todos, o que deslegitima sua presença como argumento válido.
     Como algumas pessoas não se darão ao trabalho de ir atrás da cura para o mal que as assola, será necessário um tratamento intensivo de urgência. Nesse texto, pretendo esclarecer algumas questões óbvias para quem está dentro dos estudos de gênero, mas que ainda são desconhecidas para os portadores do vírus.
     Para esses enfermos, os estudos de gênero afirmam que as pessoas podem escolher ser homens ou mulheres. Não existe nada mais mentirosa que essa afirmação. Os estudos de gênero NÃO afirmam isso! Os estudos de gênero afirmam o seguinte (presta atenção que esta será a primeira dose da cura): o sexo biológico não determina o gênero social. Os estudos de gênero separam sexo biológico de papeis sociais. Assim, cada pessoa nasce com determinada genitália (vagina ou pênis), com determinados hormônios (progesterona/estrogênio ou testosterona) e com o DNA feminino ou masculino. Isso é biológico. O que não é biológico são os papeis sociais que cada gênero assume na sociedade. Assim, quando uma criança nasce, uma série de atribuições é feita aquele corpo, dependendo da genitália que veio com ele. Se for uma genitália feminina, as atribuições serão: doce, passiva, amorosa, mãe, princesa, rosa, bonecas, cuidado, cozinhar, lavar, limpar, casamento, restrição sexual, entre outras. Ou seja, todas as características SOCIAIS pertencentes às mulheres serão projetadas nesse corpo. Se for uma genitália masculina, as atribuições serão: forte, másculo, uma certa dose de agressividade, ativo, conquistador, competitivo, azul, provedor, estímulo da sexualidade, pegador, entre outros. Ou seja, todas as características SOCIAIS pertencentes aos homens serão projetadas nesse corpo.
     Onde entram os estudos de gênero nisso tudo? Eles afirmam que essas características sociais projetadas nos corpos não são biológicas, são construções culturais! E mais, essas construções podem ser diferentes em cada cultura. Assim, na cultura ocidental nós temos determinadas construções culturais femininas e masculinas, mas nas culturas indígenas ou aborígenes, por exemplo, as construções culturais de feminino e masculino podem ser diferentes.
     É isso que quer dizer a famosa frase de Simone de Beavouir: “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino.”
Com isso, ela quer dizer que nada de biológico define o Ser mulher na sociedade, ou seja, nenhum destino biológico molda as características atribuídas às mulheres. Ela quer dizer que Ser mulher é algo elaborado pela civilização na qual essa mulher vive, ou seja, pela cultura. Assim, aquelas características, ou papeis, atribuídos ao corpo com genitália feminina são culturais, e não biológicas. Primeira dose completa.
     Segunda dose: os estudos de gênero, e aqui entram também os estudos de Judith Butler, afirmam que essas atribuições sociais, ou seja, essas construções culturais são impostas às pessoas. Impostas no sentido de estarem cristalizadas e naturalizadas em nossa cultura. A maioria das pessoas se encaixa nesses papeis sociais, ou seja, a maioria das pessoas pode se chamar de cisgênero (pessoas que têm o sexo biológico e o gênero social em concordância). Essas pessoas são aceitas pela sociedade e não sofrem preconceito. No entanto, existem outras pessoas que não se encaixam nesses papeis sociais. Essas são as transgêneros. São pessoas cujo sexo biológico e o gênero social estão em discordância. Essas são as identidades de gênero de cada pessoa, que NÃO são uma escolha!! A pessoa nasce cisgênero ou trangênero, ou se sente assim! Até aqui, ninguém falou que as pessoas são obrigadas a ser transgêneros. Apenas foi dito que existem pessoas que são. Se você não é uma pessoa transgênero, ótimo! Ninguém acha que você deveria ser uma!
     Os estudos de gênero afirmam que as pessoas transgêneros sofrem estigma por o serem, sofrem preconceito e não são aceitas pela sociedade da mesma forma como as pessoas cisgêneros. São corpos abjetos, segundo termo de Judith Butler. E é aqui que entra Foucault, também, com o conceito de corpo normalizado, o corpo educado. O corpo é educado para ser normal. E o que é ser normal? É ser cisgênero, heterossexual e seguir as atribuições sociais que são designadas para esse corpo de acordo com a genitália presente nele. O problema não é ser cisgênero, heterossexual e seguir os papeis sociais atribuídos aos homens e mulheres. O problema é essa ser a única possibilidade de normalidade dentro da nossa sociedade. Ocorre que alguns corpos não são “normais”. São considerados corpos abjetos, corpos que não importam (Judith Butler).


     O que querem afinal os estudos de gênero? Os estudos de gênero não querem, em hipótese alguma, impor que as pessoas sejam transgêneras, ou homossexuais, ou que menino vire menina e vice versa. Quem diz isso é o vírus que está se propagando pelo Brasil. Os estudos de gênero querem que as pessoas que não se encaixam nesse conceito de “normal” também sejam aceitas. Existem pessoas trans, existem pessoas homossexuais, existem pessoas queer, existem pessoas que não se encaixam nos papeis sociais atribuídos a sua genitália. Existem mulheres que são agressivas, mandonas, competitivas, existem homens que são doces, passivos, amorosos. Essas pessoas não se encaixam nos papeis de gênero. O que os estudos de gênero querem é que todos sejam aceitos, que todos possam ser quem realmente são. Inclusive que as pessoas possam sim seguir os papeis de gênero e que as mulheres possam ser doces, maternais e amorosas e que os homens possam ser competitivos e ativos. Ninguém diz que não podem sê-lo. O que os estudos de gênero querem é acabar com o preconceito e com a ojeriza a quem não segue os padrões. Por isso os estudos de gênero falam tanto em diversidade, pois as pessoas são diversas e nós afirmamos que cada diversidade deve ser respeitada. E se é pra colocar Deus no meio da conversa, o próprio Jesus ajudou a prostituta, os leprosos e os famintos, ou seja, os párias sociais, ao invés de xingá-los, excluí-los e humilhá-los.       Quem mais fala em Deus é quem menos pratica sua palavra. Quem realmente segue Jesus ajuda a travesti, a transgênero, o homossexual, todos os párias sociais da modernidade. E para aqueles que acreditam que essas pessoas vivem sem preconceito, basta lembrar que o Brasil é o número um em assassinato de travestis.

     Creio que essas palavras sejam apenas o tratamento inicial, que é longo e doloroso, pois muitas mentiras terão que ser desfeitas. Mas ajuda as pessoas a saber do que estão falando. A partir de agora, quem for criticar os estudos de gênero, que o faça com propriedade e não citando Deus ou mentiras adquiridas com esse vírus maldito que impregnou as pessoas. 

Um comentário:

  1. Muito bom e esclarecedor. Primeira vez que leio de se forma coesa e acessível a obviedade do que vemos no nosso dia a dia. 👏👏👏

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